sábado, 16 de outubro de 2010

Destempo

         
Há milhares de anos atrás, tantos que já perdi a conta, aconteceu algo que mudou a minha vida e a vida dos Newahanes para sempre, e posso afirmar que sou a maior responsável pelas desgraças que se abateu sobre todos nós. Tudo se passou na época em que os Deuses ainda andavam sob a terra como qualquer mortal. Éramos seres primitivos, vivíamos da caça e da pesca, usávamos roupas de pele curtida, cultivávamos a agricultura e sabíamos manejar bastões, lanças e flechas que eram usados contra os predadores, mas fora isso, cultivávamos a paz e a bonança. Cada Deus tinha uma nação, e cuidava dela como lhe conviesse, uns eram benevolentes e caridosos, outros eram cruéis e desumanos, mas todos eles defendiam sua raça com unhas e dentes.  Os Newahanes habitavam as planícies, possuíam grandes territórios com rios e florestas vastas, e isso causava inveja aos povos da vizinhança. Um desses povos se chamava Padwes assim como o Deus que regia aquela nação, e eram ambiciosos e invejosos, não admitiam que tivéssemos aquele paraíso para desfrutar enquanto eles tinham apenas as cordilheiras para habitar.
Para que vivêssemos em paz e respeitando as diferenças raciais, foi criado um código de ética que tanto Deuses quanto mortais teriam que seguir se quisessem viver em harmonia. Nesse código a principal lei dizia que toda vida humana era sagrada, e que se um mortal tirasse a vida de outro, deveria pagar com a sua vida pelo crime.
Mas com o passar do tempo às leis e ameaças já não surtiam os mesmos efeitos, não custava nada morrer em troca de poder, então começaram as guerras. O respeito à vida ficou em segundo plano, a riqueza passou a vir em primeiro. O Deus de nossa tribo se chama Pehawanes que quer dizer, pequeno guerreiro que comanda grande nação, e era irmão de Padwes. Nunca aceitou que usássemos de violência para resolver nada, nem mesmo em resposta a um ato violento.
Eu me chamo Agnes e cresci nesse mundo como a filha de um deus com uma mortal, não conhecia o ódio nem a ira, apenas o amor, por meus pais, meus irmãos de tribo, meu marido e meu filho Athewor. Até que um dia minha tribo foi covardemente ultrajada, invadiram nossos lares, destruíram nossa aldeia e mataram nossos homens e jovens. Não pude esquecer o horror daquele dia, os gritos e o desespero dos meus irmãos, fiz o que pude, mas todo o esforço foi inútil, mal pude salvar minha mãe e meu filho, assisti impotente à morte de meu marido que morreu para nos proteger. Meu pai não permitiu que reagíssemos e nos convidou a prantear nossos mortos para servimos de exemplo ao inimigo. Todos ficaram de acordo, menos eu. Não pude admitir que invadissem nossos lares, matassem nossos maridos e filhos, se apoderassem de tudo que nos pertencia por pura covardia e ficássemos quietos como se nada estivesse acontecendo. Incitei a todos que como eu, estavam com o coração cheio de dor e ódio, a vingar aquele massacre com a mesma moeda, eles precisavam sentir na pele o que sentimos diante de sua vilania. Formei um exército de mulheres viúvas e jovens órfãos, treinei-os e planejei tudo passo a passo, quando soubemos que os filhos de Padwes o Deus bárbaro partiram para mais uma batalha deixando seus lares desprotegidos, coloquei meu plano em prática. Massacramos todas as mulheres e crianças que encontramos, queimamos suas cabanas, espalhamos o terror, o que não foi muito difícil, eram todos frágeis e despreparados, deixamos apenas um adolescente capaz de andar por muitas léguas para que relatasse para o chefe da tribo no acampamento do outro lado da montanha tudo o que vira. Estava cega de ódio, não me importava de estar deixando meu povo em perigo, a única coisa que queria era saciar minha sede, sentir o prazer de ver o mesmo sofrimento que vivi estampado na face do inimigo, tirei-lhes o que tinham de mais caro e ainda não estava satisfeita, queria que soubessem como fora a minha vingança, a cada rogo uma vida a menos, mães implorando por filhos, jovens implorando pelos irmãos, gritos de dor e desespero, tudo exatamente como fizeram a minha família. Mas como a cada ato uma conseqüência, a punição veio em seguida. Não fui punida pelo inimigo, meu pai se encarregou disso. Ele não podia permitir que meu ato inconsequente trouxesse a desunião para o mundo, uma vingança leva a outra que leva a outra e assim sucessivamente, transformando o mundo num grande caos. Na época eu não entendia isso, mas hoje vejo com mais clareza. Então decidido a por um ponto final nessa historia, Pehawanes tomou a decisão mais difícil de sua vida. Nos levou a julgamento e fomos condenados pelos deuses ao exílio do tempo. Eu como chefe da rebelião e por me valer do fato de ser meio imortal e meio humana tive uma punição extra. Nunca me esqueci o momento da sentença, aquelas palavras ecoam na minha cabeça até hoje:
- Diante de todos os fatos apurados e do consentimento da culpa dos envolvidos no caso, fica decretado que os Newahanes envolvidos no massacre dos Padwes das montanhas serão condenados ao exílio do tempo por toda a eternidade. – Houve uma pausa e a comoção foi geral, meu pai sentado ao lado do Deus Minwe do povo frio que presidia o julgamento ficou boquiaberto. Então quando achávamos que havia acabado, eis que veio a pior parte. – Silencio, por favor! Ainda não acabei. Fica decretado também que Agnes filha de Pehawanes por se valer do fato de ser meio imortal e dessa forma levar vantagem sob suas vitimas, além do exílio, será condenada a orfandade filial a partir de já. De acordo com a lei máxima de nossa nação, terá que pagar com a vida de seu filho Athewor, a vida de tantos outros filhos que tirou dos Padwes. E que use o tempo do exílio para refletir em seus atos. – Quando ouvi aquelas palavras, foi como se o chão tivesse sumido debaixo de meus pés e me arrastado em uma queda vertiginosa por um profundo abismo, o ódio que sentia dos homens brancos das montanhas cresceu ainda mais naquele instante, minha vontade era expurgar da terra aquela nação impura, mas tudo que fiz foi gritar para que todos ouvissem as verdades que trazia dentro de mim.
- Se o que fiz foi tão errado? O que dizer de seres que atacam por ambição terras alheias, massacram, matam homens saudáveis? Eles nem respeitaram os nossos idosos indefesos, a alma de nossa tribo, fonte de profundo conhecimento. Eles têm feito coisas cruéis todos os dias e todo mundo finge que não vê. Por isso fiz o que fiz, cansei de esperar e fiz justiça com minhas próprias mãos, e isso só me põe em posição igual a dos homens das montanhas, não me torna melhor nem pior que eles.
- A sentença foi dada. – enquanto se levantava para partir, eu apelava pelo seu bom censo. Mas Minwe sequer olhou para trás. Então descarreguei todo o meu ódio na única pessoa que deveria ter me defendido, mas preferiu se manter impassível. – E você não vai fazer nada? Vai deixar que tirem meu filho de mim dessa maneira? Não bastava o fato de ter de viver parada no tempo por toda eternidade remoendo meus erros, ainda tem que me punir com mais essa dor para carregar? Como pode ficar quieto diante de tanta injustiça papai?
- Me perdoe querida?
- Não me chame de querida! Isso só faz aumentar meu ódio por você. Como pode deixar que me deem tal punição?
- Eu não podia fazer nada Agnes. Tenho toda uma nação para servir de exemplo. Você só colheu o que plantou.
- Nunca vou te perdoar! – O ódio que meu pai viu em meus olhos deve ter sido tão grande que o fez recuar decepcionado. Tenho certeza que ele teria fugido se pudesse. Mas se manteve inabalável.
 - Um dia você vai me entender. – Falou e saiu sem olhar para trás.
Padwes que assistira a tudo triunfante veio jogar sua satisfação em minha cara.
- Sinto muito querida sobrinha, de coração. Tão jovem e bela e já condenada ao exílio. Se não fosse eu a maior vitima teria até intercedido por vocês. – Falou e soltou uma sonora gargalhada.
O sangue ferveu em minhas veias, o teria retalhado com minhas próprias unhas se não tivessem me segurado.
Depois do nosso confronto, fui levada para o quarto, no momento não entendi por que, mas depois descobri que meu pai havia pedido revisão da pena alegando que fora injusta e desigual. Dois dias depois houve uma nova audiência e meu pai foi meu intercessor, graças a sua interferência consegui uma atenuante, seriamos libertados do exílio quando deixássemos para trás todas as magoas e conseguíssemos perdoar nossos inimigos, mas isso não seria assim tão fácil, as feridas que eles nos causaram seriam eternas. Recebi a nova sentença sem muitas expectativas, me fechei em mim assim que comecei a cumpri-la. Desde então estamos vivendo no que chamamos de destempo.
Sem dia, sem noite, sem horas e sem minutos, sem envelhecer e sem morrer. Os jovens continuam jovens fisicamente, as crianças continuam crianças ao menos no corpo, mas nossas mentes não são as mesmas, crescemos, amadurecemos e aprendemos muitas lições com a vida, até já nos acostumamos com o destempo. Sei que muita coisa deve ter mudado no mundo, pois o ambiente que vivemos tem mudado constantemente, como uma tempestade que varre as encostas do dia para a noite, as planícies férteis ficaram áridas, a vegetação antes verde e viçosa já não existe, tudo que temos é um ambiente desértico e acre. Em uma de suas visitas meu pai disse que isso acontece por que os habitantes do mundo em nossa volta transformaram a terra completamente e mesmo sem tempo sofremos com suas mudanças. Também perdoei o meu pai, se demorou muito ou pouco para isso acontecer não sei, mas sei que tudo aconteceu no tempo ditado por meu coração. Ele me visitou um dia e disse que estava sofrendo muito por minha causa, que não podia mais suportar minha raiva e indiferença, que tinha esperado que eu o solicitasse, e sabia o quanto eu tinha sofrido. Por mais injusto que tivesse sido comigo, ninguém me amava mais que ele. Não resisti a seu apelo e o abracei, choramos juntos pela primeira vez depois de tudo. Revelou-me que esse era um grande passo para minha libertação, já que com esse gesto provei que estava aprendendo com meu castigo. Espero realmente que esse dia chegue, que esse ódio que ainda sinto arrefeça e me traga Athewor de volta, mas confesso que tenho perdido a esperança.


domingo, 10 de outubro de 2010

Noite de Tormenta

                                                           


            O vento batia na vidraça e entrava pelas frestas produzindo sons assustadores, deixando Lina aterrorizada, o mar lá fora rugia como um monstro assustador, a tempestade estava arrasando a ilha e os moradores não podiam fazer nada a não ser esperar a tormenta passar. Não tinha medo da casa em que vivia ser destroçada pelo tornado, era forte, já resistira a muitas outras tempestades, mas no mar tudo era diferente, havia perigo pra quem era pego desprevenido, o tempo mudara de repente e havia pescadores no mar, um em especial a fazia tremer de preocupação.  Ela tinha uma ligação muito forte com o pai, era capaz de sentir sua presença mesmo a metros de distância, sentia seus medos e angustias, era capaz de precisar quando ele estava bem, ou não. Agora mesmo sabia que ele não estava bem, algo de muito errado estava se passando. Poderia ir até o quarto da mãe buscar consolo para essa longa espera, mas achou melhor aguardar de olhos grudados na vidraça com um fio de esperança, tinha fé que junto com os primeiros raios solares, o mar traria seu pai de volta. Enquanto Lina sofria por Artur na segurança de suas paredes seculares, ele vivia a maior e pior provação de sua vida.
            Quando tudo começara, estavam todos guardando os pertences que acabaram de usar na pescaria farta do dia, felizes com a sorte que tinham tido, quando um estrondo ribombou ao longe como um trovão cortando o céu rubro de fim de tarde, mas pela experiência de todos os tripulantes, não acreditavam que fosse uma tempestade se aproximando, o céu não desaba assim sem mais nem menos. È preciso um sinal antes, nuvens carregadas, ventos fortes ou neblinas sorrateiras. Antes que pudessem se dar conta do que se passava, outro estrondo ainda mais assustador foi ouvido. Artur não pensou duas vezes, recolheu as redes, os arpões, as varas e o passaguá, deu ordem pra que zarpassem sem demora, algo de muito ruim estava prestes a acontecer. Os trovões continuaram cada vez mais perto e audível, um tremor percorreu sua espinha ao pensar que finalmente chegara seu fim, não iria cumprir o que prometera a Lina ao partir a quatro dias atrás. Dessa vez não poderia voltar pra casa em segurança.
            - Içar as velas! Levantar âncora e zarpar imediatamente! – Gritava para os tripulantes, que corriam para todos os lados desesperados.
            Mas antes que pudessem fazer algo, uma densa nuvem negra chamou-lhes a atenção. Era assustadora, parecia um espectro gigantesco vindo rapidamente em direção ao veleiro, não haveria tempo de fugir, aquela estranha tempestade os pegaria de assalto mesmo se tivessem asas. Um vento extremamente forte começou a soprar, agitando o mar outrora pacífico, a coisa chegava perto muito rápido, tudo que conseguiram pensar foi que seria uma batalha árdua, mas não se renderiam tão facilmente, não sem lutar com unhas e dentes primeiro. As velas foram içadas e inflaram rapidamente, o mastro rangia com a força da ventania, Artur achou que ele não resistiria muito tempo, começou a rezar para que aquele vento fosse uma benção ajudando-os a ir para longe daquele pesadelo, e não uma desgraça ainda maior. Havia pânico no rosto dos pescadores, ninguém conseguia entender nada, mas antes que Artur pudesse dizer alguma palavra de consolo, Daniel, o segundo comandante gritou para que olhassem algo. O que todos puderam ver foi à gigantesca nuvem se transformando bruscamente em uma espiral que sugava tudo que vinha pela frente espargindo água para todo lado, o mar parecia enlouquecido, se realmente havia um Deus do mar, ele devia estar muito furioso. O cone parecia sugar a água do oceano para o céu em uma dança vertiginosa, a impressão que dava é que seriam sugados por aquele fenômeno assustador. Ficara noite derrepente e à medida que o cone furioso se aproximava, a escuridão se tornava ainda mais intensa. Uma força invisível começou a sugar o veleiro para a corrente formada pela dança da água, as ondas dançavam em círculo loucamente, e eles estavam sendo arrastados para aquela armadilha. Houve pânico entre os tripulantes, homens correndo para todos os lados procurando inutilmente a salvação, estavam desesperados com a possibilidade da morte iminente. Artur não sabia o que fazer, pensou na filha e na promessa que não poderia cumprir, ela estava sofrendo e ele podia sentir em meio a tantos sentimentos contraditórios sua angustia e desespero. Em meio aos gritos e vozes desconexos gritou para Deus ou quem quer que pudesse ouvir: - Lina, me perdoe! Eu não vou poder cumprir minha promessa! Não foi minha culpa. Eu fiz o que estava em meu alcance filha. – Caiu de joelhos apavorado e incrédulo. Então seria assim seu fim? Esmigalhado pelo vento furioso? Nunca em sua vida isso lhe passara pela cabeça, sempre pressentira que morreria velhinho, tranqüilamente deitado em sua cama no seio de sua aconchegante família, após dezenas de anos de trabalho gratificante e vários pequenos sonhos realizados.
            Antes mesmo de terminar seu desabafo, ouviu um estalo, como se algo houvesse se rompido e sentiu uma força projetar seu corpo contra o casco da proa. Antes que pudesse se agarrar em algo, foi novamente lançado contra o convés e depois a bombordo em uma luta desenfreada, enquanto era projetado novamente a estibordo pode se agarrar na janela do camarim de rádio, as mãos escorregavam por causa do banho involuntário, mas não largou o apoio. Só então foi que pode compreender o que se passara, o vento rompera o mastro que desabou sob a proa fazendo o veleiro descer de bico com o impacto, logo voltando a posição normal, onde foi surpreendido por uma onda devastadora, que o fez oscilar entre esquerda e direita como um frágil barquinho de papel, mas por mais que ele parecesse frágil, conseguiu se recuperar antes de adernar a bombordo. Novamente foi arremessado contra o vazio e bateu com força na água, Artur olhou em volta em busca de seus homens, constatou com pesar que restara apenas ele e mais três; dois deles presos nas amarras do que fora o mastro e o outro fora arremessado para o camarim próximo a ele. Certamente o restante sumira na imensidão negra no redemoinho. Mal o pobre veleiro se recuperou, foi sugado pela correnteza aspiralada formada pelo tornado furioso, todos foram engolidos pela água enquanto seguiam em uma corrida circular vertiginosa, o vento rugia. Sem fôlego, o pai de Lina se segurava como podia se recusando a morrer de forma tão absurda, a dança durou pouco mais de um minuto, até que o som ensurdecedor foi se distanciando, as dança cessando, restando apenas o embalo das ondas agitadas, mas para ele fora uma eternidade. Cedeu a pressão que fazia para se segurar e se deixou ficar deitado de barriga para cima exausto, ouviu um choro distante o que o fez ver que não estava sozinho, os restos do Netuno seguia o embalo das ondas, logo cederia e afundaria com todos os sobreviventes a bordo, se é que havia mais alguém além dele e do outro que chorava ao seu lado. Sentia dor em todo o corpo, a morte estava sendo dolorosa, se bem que ainda estava vivo, poderia sobreviver se estivesse perto de casa e não a deriva nos restos mortais de um pesqueiro velho e guerreiro. Mais uma vez pensou na filha que certamente estava dividindo todos seus sentimentos com ela, maldita ligação que faria sua pequena sofrer tamanha dor. O que via como benção, soava agora como uma desgraça sem tamanho.
             Enquanto sofria por saber que dividia aquele momento doloroso com a filha, o outro sobrevivente parara de chorar, se aproximou dele com dificuldade.
- Então estas vivo ainda Artur, tens a couraça de chumbo como eu? – O jovem se aproximou e deitou ao lado do amigo.
Artur ficou surpreso ao reconhecer Daniel, de todos era o último que esperara encontrar vivo, tão magro e frágil, era ainda inexperiente para esse tipo de situação, talvez tivesse contado apenas com a sorte como ele. Bela sorte, não morrer tragado pelo furor, para morrer aos poucos em uma batalha inglória, não sabia por que ainda se agarravam aquele fio de vida.
- Será mesmo que estamos vivos? Será que tudo isso não passa de um processo de expiação por nossos pecados na terra?
- Estamos vivos, até quando não sei, mas estamos vivos.
- Engraçado como tudo se acalmou derrepente não é? Quem diria que acabamos de passar as portas do inferno.
- É, acho que nunca vi ou ouvi coisa igual em minha vida, sem mais nem menos tudo se transformou e se perdeu num piscar de olhos. Agora vemos esse céu esplendidamente azul, como se ele não tivesse desabado sobre nós há pouco.
            Mal fechou a boca, sentiram o barco oscilar bruscamente e ser impulsionado a uma boa distância por uma forte onda, Daniel levantou assustado para ver o que se passava e ficou horrorizado, não acreditava no que seus olhos viam. Gritou para o companheiro apavorado. Artur levantou com muito esforço e olhou para onde o outro apontava boquiaberto. Ficou paralisado ao ver uma forma negra singrar o mar em direção a eles em uma velocidade impressionante. Não podia acreditar no que seus olhos viam, era surreal.
- O que é aquilo? – Balbuciou com voz fraca. Daniel estava paralisado.
A coisa fazia o mar se agitar ao sabor de seu movimento, Netuno oscilava de maneira ritmada, ambos em perfeita sincronia. Quanto o ser se aproximou o suficiente, se pos em pé como uma naja prestes a dar o bote, eles puderam identificar o que era um misto de serpente, dragão chinês e enguia. No comprimento lembrava uma serpente, no formato da cabeça lembrava os dragões da cultura chinesa e na pele lisa e esverdeada lembrava uma enguia.
- O grande Leviatã! – Daniel balbuciou perplexo. – É real!
Artur não compreendia o que o outro dizia, não sabia quem era esse tal leviatã, mas acreditou no que o outro dizia, não era momento para brincadeiras. Ele constatou apavorado que mais um mergulho e estaria dentro da barriga da aparição. Mas o grande animal continuou imóvel encarando-os do alto de seus mil metros de altura, o que era intrigante, ele parecia querer se comunicar com ambos.
- O que é que você quer da gente seu monstro? Por que nos olha desse jeito? Por que não vem logo e acaba com esse sofrimento de uma vez? Por acaso está nos achando com cara de ratos pra querer brincar com a comida? Pode vir bobão, mas antes saiba que não faremos nem cócegas dentro de sua barriga monstruosa, seu grande idiota. – Artur olhou para o amigo perplexo. Será que ele enlouquecera no momento derradeiro, ou era o pavor que lhe fazia dizer tanta besteira?
            Por mais que parecesse ridículo, as palavras de Daniel afetaram o ser que soltou um som apavorante, um misto de gemido com o canto produzido pelos cetáceos, o que fez Artur chegar à conclusão de que ele se ofendera. Decidiu tentar contornar a situação.
- Não liga pra ele não seu monstro, é um louco. Se quiser nos comer, fique a vontade, mas antes eu queria fazer um pedido. Faça a minha filha saber que eu tentei manter minha promessa de voltar para ela, mas não deu. Diga que não sinta raiva de mim, eu fiz o que podia. – Se sentia um idiota, talvez estivesse louco também, falando para um ser imaginário que o amigo era louco, mesmo assim continuou. – Seja lá o que for que tenhamos lhe feito para que aja assim conosco, perdão. Perdão se lhe ofendemos de algum modo. Não foi proposital. Sempre quis ser um homem íntegro, honrado, jamais profanaria meu segundo lar, que agora sei que é seu habitat também. Só há uma coisa mais sagrada pra mim que isso aqui, minha família. Que não verei mais depois de hoje. Espero que aceite minhas desculpas, são sinceras.
            Enquanto discursava, Daniel o olhava assombrado, certo que o amigo enlouquecera de vez.
- Que está dizendo homem. Não seja covarde. Se vamos morrer, que morramos como homens valentes, homens do mar, temos que encarar aquilo ali como um de nós, não um superior. Que historinha de perdão, profanação e o escambau. Seja macho! – Virou pro Leviatã e gritou com todas as forças. – Ô coisinha ai! Vem me encarar se for macho! Não seja covarde como esse aí não, eu é que sou páreo pra você. – Enquanto falava, subiu na amurada e fez vençao de pular na água. Mas Artur o segurou pelo braço.
- Onde você pensa que vai homem? Ta louco?
- Eu vou mostrar ao Zé grandão ali quem é que manda no pedaço, cara. Agora me solta que eu tenho contas a acertar.
            Falou e pulou se desvencilhando do aperto do amigo para o abismo lá embaixo. Mal viu o amigo sumir na água, se sobressaltou ao ver que o monstro mergulhara também com a bocarra aberta sugando tudo pela frente. Só teve tempo de colocar os braços em volta do rosto para se proteger e foi tragado para a escuridão junto com a embarcação.
            Acordou com uma luz muito forte queimando seu rosto, não conseguiu abrir os olhos, mas pode sentir que uma sombra se projetava sobre seu corpo dolorido. Ouviu vozes conhecidas e achou que chegara ao paraíso. Eram vozes femininas e ambas choravam de emoção. Não conseguiu abrir os olhos, a claridade feria sua retina. Estava exausto e deixou adormecer novamente. Achou que dormira uma eternidade, acordou menos debilitado, testou abrir os olhos e os fechou em seguida, a claridade não era tanta quanto da outra vez, mas ainda era difícil fazê-lo de súbito. Uma pessoa correu para perto de si e exclamou feliz uma oração rápida. Pode reconhecer aquela voz de imediato, era Lina que estava ao seu lado e agora gritava pela mãe emocionada. Realmente estava no paraíso. Tentou abrir os olhos até que conseguiu divisar as feições tão amadas das mulheres de sua vida.
- Que bom que acordou papai! Está sentido alguma dor?
- Não, querida. Estou bem, onde estamos? Como vieram parar aqui?
- Está em casa papai. Esse é o seu quarto lembra?
- Em casa? Em minha casa? – começou a chorar de alegria. – Mas como em casa? Não pode ser?
- O seu veleiro naufragou perto da costa papai. Encontramos o senhor desacordado pela manhã perto dos destroços na beira da praia.
- Mas como? E os outros? Cadê todo mundo?
- Infelizmente você foi o único sobrevivente Artur. Não encontraram mais ninguém. É realmente um milagre que esteja vivo, amor.
            Ele ouvia tudo incrédulo, confuso, mas estava feliz por poder ouvir novamente aquelas vozes que soavam como músicas de anjos, se fora real ou imaginário o que se passara com ele, não sabia, mas agradeceria por toda vida ao amigo marítimo que lhe proporcionara essa segunda chance.
            Sorria e chorava ao mesmo tempo como louco enquanto a mulher e a filha o enchiam de beijos, felizes por aquele milagroso renascimento.