domingo, 30 de janeiro de 2011

John

     

         Londres, 1854






John andava de um lado para o outro na sala concentrado em pensamentos, trajava uma casaca preta, calças marrom e botas pretas polidas, trazia o cabelo bem penteado. Era alto e tinha um belo porte para os seus centenários vinte e oito anos. Impressionava aonde chegava com sua beleza e poder de sedução involuntárias. Lembrava um animal selvagem preste a dar o bote enquanto andava pela sala vazia. Se tivesse um coração estaria pulsando freneticamente. Fazia anos que saíra daquela cidade e agora que voltara, Lionel queria por tudo a perder com seus atos desmedidos.
Ouviu um barulho quase inaudível e se virou enfurecido. Ele estava lá o olhando como se nada tivesse acontecido.
- Onde você esteve esse tempo todo? – Falou avançado para cima do rapaz que recuou a uma distância segura. – O que você está querendo fazendo isso? Quer botar tudo a perder? Quer acabar com meus planos? Não vê que pode me prejudicar agindo assim?
Apenas o tom de voz denunciava sua irritação, a face não se alterava, os músculos quase não mexiam, um simples mortal sequer perceberia que estavam brigando, o dialogo lembrava uma conversa pacífica em um baile sobre a beleza da festa ou a hospitalidade dos anfitriões.
- Eu só fui dar um passeio. Conhecer a cidade, estudar as condições de sobrevivência, afinal não podemos ficar trancados aqui o tempo todo.
- Quantas vezes já pedi que não me atrapalhasse, tenho coisas importantes a fazer, não bote tudo a perder...
- Não sou seu escravo ou prisioneiro. Não aguento mais minguar aqui dentro dessa casa. Se for para viver escondido. Prefiro voltar para a Alemanha. Lá ao menos tínhamos comida decente.
- Não estou pedindo que passe fome ou se sacrifique. Só estou pedindo um pouco de paciência, precisamos passar incólumes até que fique seguro para todos nós.
- Mas você sai à hora que quer, faz coisas que não me diz... Enquanto eu sou obrigado a ouvir suas ordens e apenas agitar a cauda como um cão servil. Não aguento mais essa prisão, quero respirar o ar da noite ao menos uma vez antes de morrer de tédio.
- Eu não quero lhe aprisionar, só quero impedir que você faça outra besteira como a que fez em Dover há dez anos atrás.
- Você nunca vai me perdoar não é? Vai passar na cara na primeira oportunidade que tiver. Será que não pode me dar um voto de confiança uma única vez na vida?
- Desculpe. Não tive intenção de te ofender, é só que não é fácil superar quando temos a prova de nossos erros diante de nossos olhos todo tempo. Não podemos nos arriscar como quando você raptou Mary-ann daquela vez.
- Você não acha que já aprendi a lição?
- Espero mesmo que tenha aprendido. – Suspirou para diminuir a irritação. – Agora vá. Preciso ficar sozinho.
- Trouxe comida. – Falou sumindo pela porta.
- Como assim trouxe comida? Volte aqui Lionel!
Lionel reapareceu com um embrulho no braço e jogou para John que agarrou e abriu a boca perplexo.
- Não se preocupe vovô, era um órfão solitário. A mãe estava morta, acho que morreu de Peste. É só um lanche, não pude conseguir algo melhor.
John admirou o recém nascido bestificado. Lionel se superou mais uma vez...

         Continua...

terça-feira, 25 de janeiro de 2011

Quadro Polêmico

           
             
A imaginação popular é uma das maiores dádivas da natureza, graças a ela, temos acesso a histórias fantásticas que enchem nossas vidas de sentido e nossa infância de magia.
Quando éramos criança, pequenas demais para entender o que era o bem e o mal, mas sabendo que eles existiam e que o mal não trazia coisas boas, surgiu um vendedor ambulante na pequenina cidade de pouco mais de quatro mil habitantes, vendendo quadros belíssimos com imagens de crianças angelicais nos seus momentos mais cândidos em traços perfeitos, chegavam a impressionar de tanta viveza e realidade. Não havia quem não quisesse comprá-los, foram vendidos todos, e para quem não conseguira o seu exemplar, foram feito encomendas.
Talvez por causa de tamanha perfeição ou por causa de tanto sucesso, a imaginação popular foi posta em xeque mais uma vez. Algum tempo depois, chegaram rumores na cidade de que os quadros belos e encantadores eram feitos por um adorador de satanás e estavam amaldiçoados. Segundo a crendice, o pintor era um homem sofredor que tinha um filho com uma doença mortal restando-lhe pouco tempo de vida, cansado de procurar ajuda em vão, acabou fazendo um pacto com o diabo para que salvasse a vida de seu filho e em troca teria um fiel devotado e divulgador de sua causa. A criança se salvou, e o Que Não Deve ser Nomeado pediu que o homem pintasse imagens que refletissem sua verdadeira beleza, surgindo assim os misteriosos quadros. Junto com a história, surgiram também depoimentos de pessoas que juravam ter visto a criança se mexer ou piscar o olho quando estavam sós em casa. Outros diziam que o menino havia bocejado, e outros ainda mais ousados disseram que olharam para o quadro a meia noite e viram a imagem do inimigo se projetar na tela envolto em chamas e rindo de contentamento por ter tido acesso a tantas casas de uma só vez.
Histórias inacreditáveis, mas que causou pânico nos habitantes que temia sofrer as agruras do fogo do inferno, fazendo-os tomarem atitudes drásticas. A maioria queimou os quadros, outros doaram e outros simplesmente jogaram fora. Ainda assim surgiram noticias absurdas de pessoas que viram o diabo projetado nas chamas formadas pelos quadros queimando. Outros disseram que viram lágrimas escorrerem dos olhos das crianças enquanto crepitavam na fogueira. Mas nada disso convenceu meus pais a se desfazerem do menino loirinho adormecido entre as mantas e o bichinho de pelúcia, ele tinha bochechas e lábios rosados e lembrava um anjo daqueles que vemos nas pinturas de Da Vinci, Rafael ou Michelangelo.
Não posso negar que era de uma beleza impressionante, mas nada que pudesse causar espanto ou pânico. Minha mãe dizia que apenas o pintor era um bom artista, e mesmo com tantos apelos para que se desfizesse dele, não deu ouvidos. Não via nada demais naquela cena tão comum e tão bela. Mas a imaginação de uma criança ultrapassa todas a fronteiras da razão, então passa a acreditar naquilo que mais lhe apraz. Por causa dessas histórias e da imaginação hiper fértil de minha prima, fomos torturados com a ideia de ver o quadro mexer, bocejar, piscar ou refletir o malvado em nossa frente roubando de alguma forma inexplicada nossa alma e nossa fé em Deus que nos levaria ao paraíso do outro lado da vida. Chegávamos a ver o que a prima nos convencia de estar vendo, ficando confusos quanto à veracidade do que nossos olhos viam, ou melhor, nossa mente projetava.
O resultado de toda essa história foi que deixamos de dormir tranquilamente,  tínhamos pesadelos terríveis, não olhávamos para o pequeno inocente refletido naquela tela, e não tínhamos coragem de ficar sozinhos no mesmo lugar em que o quadro estivesse.
Como resistir a tudo aquilo? Mamãe não sabia, pensou ate na ideia de doar o quadro ou esconder por um tempo. Mas inconformada com o fato de que uma fantasia popular pudesse vencer a razão de um fato, decidiu que teríamos de acreditar na palavra dela.
Com toda sua sabedoria e paciência, contou-nos a historia de como o diabo perdera uma vez para o Deus todo poderoso, e isso provava que ele era maior que tudo no mundo, até mesmo que um servo do mal. Depois disso pegou o quadro e nos mostrou a inocência daquela cena, era quase um anjo como eu ou meus irmãos. Fez-nos encarar a realidade de tudo aquilo e com razão deixou claro o absurdo daquelas histórias fantásticas. Naquele dia conversamos de igual para igual e acho que isso contribuiu para que abríssemos os olhos para a verdade.
Finalizou a conversa nos dando um conselho: nunca devíamos acreditar em nada que nossos olhos não tivessem visto. E estórias existem e sempre existirão, não importa onde estejamos, vão sempre existir lendas populares, mesmo que tenham uma pitada de realidade, vão ser sempre Lendas Urbanas.