terça-feira, 21 de setembro de 2010

Aracê e Kaluana: Pequena aurora e pequeno guerreiro

É preciso ser muito especial para merecer uma criança especial.


            
Aracê viu a mãe sair chorando da cabana e olhou para o irmão menor dormindo na rede, haviam acabado de falar sobre ele, os mais velhos da família estavam reunidos pra decidir o destino daquele pequeno ser, mas ambas já sabiam qual seria a sentença e estavam desesperadas. Iaciara voltou com um bulbo na mão, Aracê sentiu que a mãe estava planejando algo e não era bom.
- Que você vai fazer mãe?
- Nada. Não podemos fazer nada né?
- Vamos embora daqui mãe. Vamos pra aldeia dos homens brancos, eles vão ajudar nois.
- Eu não posso, esse é meu povo, nunca mais ia poder voltar. Não posso viver longe daqui.
- E Kaluana mãe? Não vou conseguir viver sabendo o que fizeram a ele. Não posso deixar que o enterrem sem fazer nada. Eu entro no buraco junto com ele mãe. Não quero viver sem ele.
- Você vai com ele pra aldeia dos brancos então. Cuida dele pra mim. Leva ele pra longe filha.
- Mas como mãe? Sozinha? Vamos comigo.
- Se você tem medo é melhor ficar tudo como tá. Vamos esperar seu pai voltar e terminar logo com isso.
Aracê olhou para o irmãozinho dormindo candidamente e começou a chorar. Tinha medo da floresta à noite, tinha medo dos espíritos, tinha medo do castigo de Tupã e dos irmãos de tribo. Mas tinha mais medo de não ter mais seu pequeno consigo, ele não podia ser castigado por algo que não fizera, era inocente. Pegou a tipóia no gancho e passou em volta do corpo, pediu à mãe que ajudasse a acomodá-lo ainda dormindo e o beijou. Era lindo e gorducho.
- A senhora vai ver a gente depois?
- Vou sim, você não sabe como me faz feliz filha, salve seu irmão por mim. Não tenha medo, eu vou lhes proteger todo tempo. Agora vai antes que chegue alguém, você ta protegida pelo escuro da noite, vai ser mais fácil.
- Vou lhe esperar mãe, você e o pai.
Iaciara abraçou os filhos em prantos, era pro bem deles, mesmo assim era muito difícil, mas era a melhor decisão a tomar, antes os dois banidos, mas vivos do que os dois mortos e ela viva. Não queria nem pensar.
 Aracê saiu com cautela da cabana para não ser vista e entrou na floresta escura, não quis pensar no pavor que sentia pra não faltar à coragem, seguiu o mais rápido que podia com o irmão seguro nas costas preso pela tipóia, era pesado demais para seu corpinho pequenino e frágil, por isso não conseguia correr como desejava, logo saberiam de sua fuga e iriam atrás deles, seria punida com a morte se fosse pega, por isso não parou um minuto sequer, mas mesmo com os olhos familiarizados com a luz da floresta, não conseguia identificar pra que direção estava indo, deviam estar perdidos.
Sentia frio, fome e muito cansaço, não fazia idéia há quanto tempo estavam andando, mas já andara muito, talvez o suficiente pra se sentir segura e parar, precisava descansar, estava dormindo em pé. Encontrou a raiz de uma velha árvore que serviria de abrigo contra os animais perigosos, retirou o irmão das costas e sentou com ele aconchegado em seu colo. Ainda dormia, seus olhinhos puxados mal tinha cílios, pareciam jaci quase coberta por tupã, sua boquinha mastigava algo invisível, talvez sonhasse.
Estava tremendo, não sabia se de frio ou de medo, estava apavorada, sentia que nunca mais veria sua aldeia, seus familiares, sua mãe. Talvez morressem ali mesmo picados por uma cobra, picados por um inseto venenoso, ou de fome e frio, a floresta escondia inúmeros perigos. E se estivessem perdidos? Não trouxera nada consigo para ela e para Kaluana, pequeno guerreiro. Não queria pensar nisso, seria pior.
O médico dissera que ele era doente, tinha o coração fraco por isso não se desenvolvia direito, alem de uma doença na cabeça, nunca seria como ela ou os pais, ele era especial. Talvez o médico de branco estivesse mesmo certo, ele era um guerreiro especial. Enxugou as lágrimas que insistiam em cair por seu rosto, já tinha treze anos, não era mais curumim pra chorar de medo. Era quase adulta, sabia tomar decisões, e era responsável pelo pequeno Kaluana agora. Beijou a testinha fria do irmão que apesar de ter mais de dois anos, ainda era seu bebê, e encostou a cabeça no tronco da árvore. A essa altura seu pai e os guerreiros da tribo já devia estar procurando por eles. E sua mãe, como estaria?
Dormiu sem sentir que o fazia de tão cansada, acordou com os resmungos do menino, quando abriu os olhos já estava alvorecendo e os pássaros já cantavam nas árvores em volta. Levantou e o deitou no chão, mas como o menino ficou chorando pegou no colo e levou para procurar algo pra ele comer ou beber, se continuasse fazendo barulho atrairia algum predador ou até mesmo os índios que provavelmente os buscavam. Achou frutos secos derrubados pelos macacos, deu ao irmão triturado pra que pudesse engoli, ela podia esperar mais um pouco. Depois da pobre refeição, seguiram em frente, com a aurora viera também um novo fio de esperança, seu coração dizia que achariam a saída, seriam salvos e amparados. Seu irmãozinho teria tratamento e viveria muito tempo ainda, ela seria uma ótima irmã para ele. Mas quanto a seus pais, seu coração não dava bons presságios, sentia que estavam sós no mundo. Seguiu a trilha visível agora com a luz do sol, pegaria a estrada e iria pra cidade mais próxima pedir ajuda no primeiro órgão público que encontrasse. Não importava o que seria do futuro, o importante é que seu irmãozinho não seria enterrado vivo.

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