sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

John (Penúltima parte)

           
Mary-ann estremeceu diante da descrição vívida de John.
Só então ele percebeu que cometera um erro, ela passara por tudo isso também e graças a Lionel. Nunca perdoaria o neto por isso.
O silêncio que se fez era constrangedor, mas Mary o quebrou com a voz trêmula.
- E o que era essa criatura desprezível? Qual o nome que damos a esse tipo de ser?
- Ele era um vampiro! Um sanguessuga, ser que vive do sangue humano, sem se importar com o fato de ser um assassino.
- E vocês são assim? Vivem sugando o sangue humano para se alimentar?
- Não, eu nunca matei ninguém para continuar vivo. Tenho resistido todos esses anos para não cair em tentação.
- E quando foi que o senhor se deu conta que havia se tornado um vampiro?
- Quando acordei dias depois com a garganta queimando, meu corpo todo queimava como se eu tivesse com febre de quarenta graus, e aquela sede incontrolável me consumindo, me torturando, me fazendo perder a sanidade.
“Jane veio até mim assustada, e eu senti seu cheiro como um cão farejador. Senti desejo de mordê-la, e isso me apavorou, levantei da cama como uma múmia e sai aos tropeços dali, quanto mais eu a desejava, mais eu corria para longe. Os gritos dela ainda ecoavam em minha cabeça, queria voltar, mas tinha medo, a sede estava ficando cada vez mais insuportável, então parei em um rancho e fiz minha primeira vítima. Suguei o sangue de um cavalo no estábulo, só parei quando me senti satisfeito. Mas ai ele já estava morto”.
“Eu quis chorar, mas não consegui, fugi para longe dali e quando achei que já estava longe o suficiente das pessoas, gritei como um louco”.
“Gritar foi a melhor maneira que achei para me livrar da dor, no começo isso assustava Jane, mas com o tempo ela se acostumou. Achava que fazia parte do meu sofrimento por causa da doença que eu adquirira depois do ataque, aliás, essa foi a melhor desculpa que eu poderia ter dado para minha mudança física e mental. Todos achavam que eu havia contraído uma misteriosa doença que me impedia de sair ao sol, que me trazia dores musculares inimagináveis, que me fazia ficar aparentemente jovem apesar do passar dos anos e que me fizeram escolher os cantos escuros do meu quarto. No início Jane recebia muitas visitas, todos muito solidários com seu sofrimento, mas com o passar do tempo todos cansaram e a abandonaram a própria sorte. Éramos apenas eu e ela outra vez”.
“Havia uma ligação forte entre a gente, a ponto de me fazer fugir dela toda vez que sentisse sede, a ponto de me fazer lutar por ela e querer continuar vivo apesar de tudo”.
“Ela cresceu, se casou com um camponês que também se chamava Lionel. Teve três filhos, Matthew, Catheryne e Lionel”.
“Ela era feliz e achei que havia chegado à hora de partir já que tinha quem cuidasse dela. Mas Jane reagiu de maneira surpreendente quando lhe disse minha decisão. Largou tudo para me seguir, não se importava com os filhos e o marido, iria comigo aonde eu fosse. Tentei convencê-la do contrário, mas foi inútil, achava que só estaria segura ao meu lado. Diante disso, resolvi ficar, sabia que ela não seria feliz longe deles, e não seria feliz longe de mim. A admiração de Jane por mim se estendeu entre as crianças, Catheryne, Matthew e Lionel me adoravam, mas Lionel mais que os outros. Éramos inseparáveis”.
“As crianças cresceram, Catheryne se casou e foi viver com a própria família, Matthew era frágil, não chegou aos vinte anos, logo depois Jane ficou viúva. E de repente só havíamos nós três. Cada vez mais doente, ela começou a se preocupar com o fato de que eu ficaria sozinho no mundo quando ela se fosse. Eu não entendia por que ela tinha tanto medo da solidão, mas ela estava certa, eu seria muito infeliz depois que todos que eu conhecia partissem e me deixasse só no mundo. Foi então que ela com o consentimento dele... Entregou-me o Lionel. No inicio recusei, mas diante da insistência dos dois e louco como era, não pestanejei, aceitei a oferta. Ele ficou eufórico com a possibilidade de ser minha eterna companhia. E eu feliz por ter aquele garoto que tanto amava ao meu lado. Depois que o mordi, me arrependi amargamente. Jane me consolava dizendo que estava tudo bem, mas eu jamais superei esse remorso. Não tinha o direito de ceifar a vida de um jovem tão adorável por puro egoísmo”.
“Se eu odiava tanto o fato de ser esse ser desprezível, então por que impus essa desgraça a alguém que eu dizia que amava?”
Mary percebeu que isso ainda o fazia sofrer, o remorso o consumia por dentro.
- O que você fez foi um grande ato de amor papai, não deve se culpar tanto. Lionel consentiu, você não fez isso à força, era vontade dele também.
- Nada justifica meu ato minha pequenina. Fui um covarde, um imbecil.
- Não fale assim papai! Lionel nunca se arrependeu disso. Então por que não pensa que foi uma decisão dele também?
- Ele era um garoto, não tinha condições de decidir nada naquela época. Mas eu não, eu sabia o que estava fazendo. E fui um pusilânime...
- Não papai! Não fale assim? Por que se culpar tanto de algo que tenho certeza que Lionel nunca se queixou ou o culpou?
- Incrível ver que você gosta tanto dele e o desculpou depois de tudo que lhe fez. Sou muito grato por isso.
- E não era para agradecer? Ele salvou minha vida, me criou, me amou. Devo muito a ele papai.
- Como salvou sua vida Mary? Ele matou sua família!
- Não! Ele jamais faria isso! Ele é bom, aprendeu muito com o senhor e tem muito orgulho disso.
- Como não? Mas então quem fez aquilo?
- Meus pais foram atacados por três... – Parou emocionada, depois de tanto tempo ainda sentia pavor em falar desse assunto. – O senhor sabe, eles matam sem dó nem piedade, e foram cruéis com eles. Iam me matar também se Lionel não tivesse impedido, ele só estava na hora certa no lugar errado e acabou levando a culpa. Ele arriscou a vida para me salvar.
- E por que ele me escondeu tudo isso por tanto tempo? Por que ele não me contou?
- O senhor não lhe deu chance, caiu em cima dele e tirou suas próprias conclusões quando o viu chegar comigo nos braços.
- Claro! Ele chegou corrido com uma multidão furiosa atrás dele, as pessoas bradavam que ele era um monstro assassino. Queria que eu fizesse o que?
- Desse um pouco de crédito a ele uma vez na vida e não o tratasse sempre como um inconsequente, o que ele não é. Apesar do corpo jovem, a cabeça dele é de um homem maduro e responsável.
- Você não o conhece como eu o conheço!
- Será mesmo papai? Ele conversa comigo, me conta suas tristezas e alegrias, me tem como confidente. Eu sei o que se passa em sua alma, ainda que digas que ele não possui uma.
- Ele nunca me deu mostras de que merece algum crédito. A gente nunca conversa ou troca confidências. Reconheço que sou culpado, mas esse é meu jeito. Não sei ser diferente.
- Então aproveite essa oportunidade e faça uma tentativa. Vai ser bom para o senhor e para ele.
- É, talvez você tenha razão. – beijou a testa da garota e acariciou o rosto dela. – Não posso crer que estou recebendo conselhos sensatos de uma menina de quinze anos.
- Dezesseis papai. Fiz mês passado.
- Mas já? Está quase uma anciã então.
- Papai!
Enquanto os dois riam abraçados, alguém bateu na porta. O mordomo entrou e anunciou que tinham visitas.
- Diga ao Mr. Chapman que o receberei em alguns instantes Mr. Jones. Obrigada.
- Sim senhor. – Mr. Jones saiu e fechou a porta atrás de si.
- Antes de você sair quero que saiba que só lhe contei tudo isso para que você soubesse quem realmente somos, eu e Lionel. Acho que já tem idade para entender bem as coisas e por isso espero compreensão de sua parte.
- Claro que compreendo papai. E saiba que nada mudou entre a gente. Acho que os amo ainda mais.
- Fico muito feliz em saber disso. E tem mais uma coisa. Na verdade eu queria um favor seu.
- Favor? Qual?
- Preciso que você volte para a Alemanha com o Lionel essa noite.
- Mas por que?
- É necessário. Você vai correr perigo se ficar, por isso preciso que vá.
- O senhor não vem conosco?
- Infelizmente não posso. Vocês vão ter que partir sem mim.
- Se é assim então não vou papai. Não vou ficar tranquila de saber que o senhor corre perigo aqui sozinho enquanto estamos salvando nossa própria pele.
- Não Mary, você tem que partir ainda hoje. Não me contrarie querida? Isso é muito sério. Tem uma gangue aqui em Londres que está dominando a saída e a entrada de todos os imigrantes e eles já nos descobriram. Até agora não sabem nada de você, mas não vai demorar muito até que descubram e então você estará correndo perigo. Não quero que tenha que passar por tudo de novo filha.
- Entendo o seu lado papai, mas não quero partir sem você. Por que não vem conosco?
- Eu não posso ir ainda.
- Por que não?
- É uma longa história...
- Não me convenceu.
Diante da relutância da garota, resolveu revelar tudo.
- Partimos de Londres assim que Jane morreu, viajamos sem destino pela Europa em busca de uma ocupação, mas alguns anos depois a vida perdeu o sentido e eu me senti vazio. Já não sabia mais quem eu era ou o que estava fazendo da minha vida, então decidi voltar para Londres para reencontrar o homem que fui um dia e matar um pouco da saudade dos meus parentes queridos que haviam vivido aqui. Eu só queria reavivar as lembranças, mas acabei encontrando bem mais que isso.
“Um dia estava revendo o rancho onde morávamos e vi uma camponesinha sair de dentro dele para pegar água no poço. Era Jane bem em minha frente, jovem e saudável outra vez. De repente era como se eu tivesse voltado no tempo, fosse o mesmo camponês de antes voltando da lida e encontrando minha família feliz a minha espera”.
“Investiguei e descobri que era a neta de minha neta, idêntica em tudo a Jane ou mesmo a minha esposa Catheryne com quem Jane se parecia”.
“Diante disso, tomei a decisão de protegê-los de tudo e de todos, era como se eu tivesse garantindo que Jane, Kathy e Matt não partissem de uma vez da minha companhia. Eles voltariam para mim no decorrer do tempo”.
“Aproveitei a onda de transformação e modernidade que estava começando a povoar a Inglaterra e comecei a investir na industrialização e modernização da mão de obra industrial. Ganhei muito dinheiro, me tornei um homem de negócios. Quando era chegada a hora, fingia que havia morrido, deixando um testamento para eles como se fosse um parente distante tendo-os como únicos herdeiros. Desse jeito vi meus descendentes florescerem e prosperarem. Mas, tivemos que fugir de Dover há dez anos atrás e tive que largá-los. Acabei perdendo o contato. Agora preciso reencontrá-los e retomar minha razão de viver”.
“Entende agora por que não posso partir? Tenho que descobrir onde vivem, o que fazem e como posso voltar a ajudá-los”.
- Como o senhor pretende reencontrá-los? Londres está muito grande agora, vai ser como buscar agulha em um palheiro.
- Eu contratei um detetive. Ele está ai fora agora me aguardando. Certamente tem novidades para mim.
- Então vou pedir que entre. Não vamos mais fazê-lo esperar não é?
- Isso. Mande.
- Boa sorte então papai.
- Obrigada. E Mary? Nunca se esqueça que eu te amo muito.
- Também te amo papai.
Mary saiu e respirou fundo ao fechar a porta atrás de si, precisava processar tanta informação. Pediu que Mr. Chapman entrasse e foi até o quarto onde estavam Lionel e o bebê. Encontrou-o acalentado o menino adormecido no braço.
- Então? O que meu avô tanto conversou com você esse tempo todo?
- Ele me fez relatos emocionantes de sua vida, me falou de você e me disse que temos que partir, mas não me convenceu disso. Agora é que não sei mesmo se quero partir e deixá-lo Lionel.
- Se John quer que façamos isso, acho melhor não contrariá-lo Mary, ele sabe bem o que faz.
- Então você quer partir e deixá-lo Lionel?
- Não! Mas, não sei se quero desobedecê-lo e vir a me arrepender depois. O que ele pensa de mim é muito importante, e não tenho feito por onde ele me tenha em boa conta ultimamente. – Enquanto falava, deitou o bebê na cama.
- Sei o quanto isso é importante para você. E sei também que John te ama mais que tudo, e não importa quantos erros cometa nessa vida, ele vai te perdoar sempre.
Ela o abraçou enquanto ele ponderava pesaroso sobre a opinião dela.
Ouviram um grito forte vindo da biblioteca e correram ate lá. Encontraram Mr. Jones no meio do caminho.
- O que houve Mr. Jones?
- Não sei senhor Lionel, estava na porta dispensando Mr. Chapman quando ouvi o senhor John gritar. – Falou com cara de pavor.
- Tudo bem Mr. Jones, não precisa se preocupar. Acho que ele não recebeu uma boa noticia. Essa é só uma forma dele expressar a dor que ela lhe causou. – Mary falou prevendo o acontecido. – Pode ir para a cozinha, tome um copo d’água. E quando ele estiver melhor, iremos vê-lo. Vá se recompor sim!
- Co-com licença. – Falou e saiu apressado.
 Assim que o senhor trêmulo sumiu pelo corredor, Lionel quis ir até o avô, mas Mary o impediu.
- Deixe-o se recuperar, ele vai nos procurar quando achar necessário.
- Mas eu preciso saber o que aconteceu com ele.
- Não se preocupe, ele vai nos informar quando chegar à hora certa.
- Tudo bem, vamos aguardar.

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Homenagem

Ainda é cedo...
Não vá ainda, temos muito o que fazer.

Ainda é cedo, e se eu tenho medo,
Como vou fazer sem você?
Como fica essa vaga sensação de vazio
Essa eterna espera, olhar na janela, esperando o amanhã que não vem?
Ainda é cedo, vamos ver aonde podemos chegar.
Vamos ver o que ainda podemos sonhar.
Se muito já perdemos...
Vamos ver o que ainda iremos ganhar.
Há tantos seres encantados, mistérios a serem desvendados.
Contos a serem inventados...
Ainda é cedo...
Estamos apenas começando o dia,
Tanta luz ainda brilha, quero ver o por do sol com você.
Quero acariciar suas rugas, sua pele translúcida que tanta coisa já viveu.
Quero compartilhar meus desejos, meus pequenos feitos, minhas pequenas vitórias.
Tenho tanto para dizer, tanto para aprender...

Ainda é cedo...
Não era a hora de você partir.

sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

John ( Continuação)

           
- Onde você o encontrou?
- Na Dudley Street em um sobrado velho e mal cuidado, a mãe havia morrido há pouco.
- Então o leve e ponha-o de volta onde achou. Vou sair e quando voltar não quero nem rastro desse infeliz aqui.
- Vai ser impossível. A essa altura já devem ter encontrado o corpo e perceberam que o bebê sumiu.
- Como você sabe disso?
- Quando eu estava no apartamento, ouvi alguém chegando, mas não se preocupe, saí antes que me vissem.
- Mais essa agora. Tome! Leve-o daqui. – Falou entregando o bebê. – Tenho que resolver um assunto. Quando eu voltar quero que tenha resolvido esse ai também.
Falou e saiu pisando firme.
Andou por algum tempo sem perceber ao certo onde estava, quando se deu conta já havia chegado à beira do Tâmisa. As lembranças surgindo como uma onda, quase poderia ver tudo acontecer em sua frente, os risos de Kathy, a vozinha fina e estridente de Jane. Sua pequena Jane...
Tanta coisa mudara desde então, a cidade crescera, as pessoas mendigavam por uma mísera vida de escravidão. Onde estava os camponeses? Onde estavam os homens de bem? 
Aquela não era mais a sua Londres, mas não a deixaria por enquanto, não enquanto existissem laços de sangue.
Enquanto pensava, sentiu uma sensação estranha, olhou em volta e só havia o silêncio da madrugada, ninguém a vista. Mas sentia que estava sendo observado por alguém ou algo, havia um sinal de alerta em seu interior. Achou melhor voltar para casa.
Saiu fingindo que não havia percebido nada, quem o estava observando, não deveria ser confiável, melhor não arriscar. Não estava curioso de quem se trataria. Se não fosse o incidente que ocorreria, não teria descoberto seu perseguidor.
Enquanto seguia pela Pall Mall Street, um vulto negro saltou em sua direção como um gato, aterrissou diante de si e bloqueou seu caminho.
- Onde pensa que vai forasteiro? – O desconhecido perguntou em tom ameaçador. Tinha umas expressões grosseiras, selvagens, lembrava um grande rato sujo e desgrenhado. Era um tanto assustador, certamente Mary-ann entraria em pânico diante dele. – Não gostamos de intrusos em nossa região.
- Não sou forasteiro. Sou cidadão desta terra, nasci aqui em Westminster. Quem lhe deu o direito de interpelar-me?
- O direito a mim conferido quando me tornei o guardião deste lugar. E como tal tenho o total dever de controlar a entrada e a saída de estranhos na minha região. O que me garante que falas a verdade? Como posso crer no que me dizes se nunca o vi por aqui? Como fez para se esconder por tanto tempo?
- Vivo trancado em casa ultimamente, prefiro a calmaria do campo a essa desordem que essa cidade se tornou. Saí hoje por que quis pensar, arejar minha cabeça. Não estou aqui como concorrente, não se preocupe.
- Oui, oui. Vou acreditar em você. Mas quero que saiba que estaremos em seu encalço, saberemos cada passo que der... Au revoir. Bon Voyage. – Falou e saiu da frente para que John pudesse seguir.
Chegou em casa duas horas depois, entrou e foi direto para o quarto de Lionel.
- Precisamos conversar. Vem comigo!
Lionel o seguiu sem entender o que estava acontecendo, sabia que era algo grave por que John estava muito alterado. Entraram na biblioteca e ele trancou a porta.
- Se eu lhe pedisse um favor você faria?
- Claro Vô. Sem pensar duas vezes.
- Quero que você leve a Mary de volta para a Alemanha.
- Quê? Como assim?
- Estamos sendo vigiados. Hoje quando fui dar uma volta fui interceptado por um sanguessuga que me ameaçou para que não colocasse em risco seus negócios. Disse que vai vigiar cada passo que eu der. Entende agora por que eu preciso que você a tire daqui? Não podemos correr o risco de descobrirem-na.
- E porque você não vem conosco? Não há nada que nos prenda aqui. Essa não é mais a Londres que conhecemos, essa metrópole cheia de gente esquisita, de desabrigados, de sujeira. Esse não é mais nosso lugar vovô. Venha com a gente?
- Não posso. Tenho que encontrar alguém antes de partir. Não vou descansar enquanto não o fizer. Não será um bandidozinho de quinta que vai me impedir.
- Isso não faz mais sentido, sabe que não faz. Não temos mais ninguém que nos prenda aqui. Seja lá quem for que procura, nem imagina que existimos.
- Não importa. Eu vou ficar. – Falou decidido. – Então? Posso providenciar tudo para sua partida?
- Você só pode estar louco. Como pode insistir tanto nesse barco furado?
- Chega de discussão Lionel, já decidi. Não tem nada que me faça desistir.
- E se ela se recusar a ir sem o senhor? O que eu faço? A levarei a força?
- Não, eu a convencerei a ir. Não se preocupe. Promete que vai cuidar bem dela até eu voltar? Promete que vai defendê-la com sua própria vida se for preciso?
- Tá, eu prometo. Mas vê se não demora muito a se juntar a gente. Vamos estar te esperando.
Lionel abraçou o avô e já ia saindo quando ele o chamou.
- E o que você fez com o bebê?
- Eu? Bom... – Suspirou e fitou o chão desconfiado. – Eu o abriguei em um lugar seguro.  
- Onde?!               
- Entreguei-o a Mary-ann para que cuidasse dele até descidir aonde vou deixá-lo em segurança.
John o encarou irritado. Ainda teria que resolver mais essa por que se dependesse do neto, seria mais um que teria que abrigar. Claro que não estava reclamando de ter feito isso com a pequena Mary, mas não era saudável ter humanos por perto. E era egoísta também, pois teria que privá-los do direito de ser uma pessoa normal como todas as outras.
- Tudo bem. Eu cuidarei disso. Agora vá. Preciso ficar só. E quando Mary acordar, peça que venha me ver, preciso lhe falar.
- Ok.
Quando os primeiros raios de sol começaram a surgir, fechou as cortinas e acendeu as velas de um único candelabro. Não queria muita claridade, a luz feria seus olhos.
Pouco mais de duas horas depois, alguém bateu na porta.
- Olá papai. Mandou me chamar?
- Sim querida. Sente-se aqui. – Falou apontando a poltrona diante de si. Depois que ela se acomodou ele continuou. – Tenho algo muito sério pra lhe dizer. Mas eu queria que não me julgasse mal querida. Entenda que aconteça o que acontecer, eu nunca iria machucá-la e jamais duvide do meu amor e do amor de Lionel por você.
- Não estou entendendo papai. – Mary-ann o fitou com seus olhos azuis profundos, mas parecia tranquila o que fez John seguir em frente.
- Chegou à hora de você saber a verdade sobre a gente.
Ela se limitou a ajeitar os longos cachos dourados e se acomodou melhor na poltrona para ouvir o que ele tinha a dizer pressentindo que seria uma longa história. John estudou seus movimentos atentamente e recomeçou a falar.
- Você sempre quis saber muitas coisas de mim, mas eu sempre dei respostas evasivas. Agora chegou a hora de responder com sinceridade. Pode me perguntar o que quiser e eu responderei.
- Posso mesmo?
- Claro. O que você gostaria de saber minha querida?
- Deixe-me ver. Por que sua mãe o batizou de John?
- Só isso? Então tá. Minha mãe era devota de St. John, toda vez que acontecia alguma coisa boa, ela atribuía o feito a ele. Se papai plantava, ela pedia a St. John a benção para a colheita, se um novilho novo nascia ela o dedicava a St. John... - Enquanto falava sorria saudoso. – Eram tempos maravilhosos aqueles.
- Seu pai plantava? E sua mãe fazia o que?
- Eu sou filho de camponeses, nasci camponês, minha mãe passava o dia tecendo e fiando. Meu pai passava o dia no campo. Eu passava o dia com ele aprendendo como cuidar da terra que um dia seria minha e de minha própria família. Eu nasci em um tempo em que o grande Tâmisa era uma benção para seus filhos e não uma desgraça. A vida era fácil, não se precisava de muito para ser feliz. Casei-me com uma jovem da vizinhança chamada Catheryne, a conheci na igreja e foi amor à primeira vista. Tivemos dois filhos, Uma menina chamada Jane, um menino chamado Matthew. Só os via a noite quando chegava da lida, mas todos me recebiam com grande alegria e eu me sentia no paraíso, era um homem realizado.
“Jane crescia depressa, e ajudava Kathy em tudo, era prestativa. Matt já era mais preguiçoso, preferia ficar sob os cuidados da irmã e da mãe, relutava em me acompanhar no campo. Tentei até que o convenci a ir comigo, estava seguindo o mesmo ramo de meu pai, e sabia que esse tempo juntos só favoreceria nossa relação. Eu os amava tanto!”
Parou emocionado. Eram tantas lembranças. Não havia um só dia que não lembrasse deles, não sentisse dor e saudade.
“Matt era frágil e um dia acabou adoecendo, então fui sozinho para o campo, mas quando voltei à noite, ninguém correu para me abraçar, entrei em casa com o coração apertado, devia ter acontecido algo de muito grave para a casa estar tão silenciosa. Abri a porta e vi minha Kathy caída na sala ensanguentada e imóvel, havia sinais de luta, móveis quebrados, tudo espalhado. Corri até ela, mas já era tarde, estava morta. Ouvi um grito agudo vindo do quarto, era Jane apavorada. Quando cheguei lá, vi a criatura mais desprezível que existe avançando para ela com a boca suja de sangue. Sem medir as conseqüências, pulei em cima dele antes que chegasse perto de minha filha, lutamos por alguns segundos, mas ele era extremamente forte. Me arremessou na parede e me imobilizou, senti seus caninos cravando em meu pescoço. Ele começou a sugar meu sangue como fizera com Kathy, perdi o controle de meus movimentos, mas os gritos apavorados de Jane me chamaram a razão, e eu voltei a lutar para me soltar daquele abraço mortal. Ele a mataria também se eu não fizesse nada. Decidi que não lhe daria esse prazer. Poderia até me levar, mas Jane não. De algum modo consegui força para me livrar dele e quando o fiz, peguei uma tocha acesa da lareira e enfiei em seu olho. Ele começou a gritar feito louco com o olho derretido pela chama, aproveitei e corri para Jane. Ela estava em estado de choque encolhida a um canto, perguntei por Matt e ela apenas olhou para a cama ao lado.
Ele também estava morto. Não passava de um pequeno embrulho ensangue jogado no colchão. Nunca senti tanta dor em minha vida como naquele momento. Em um ato de insanidade, avancei em cima do ser e o lancei nas chamas da lareira. Seu corpo era inflamável e incendiou como uma estopa. Ouvimos seus gritos abraçados, sem sentir nenhum pesar por sua triste sorte. Meu pescoço sangrava e eu perdi os sentidos...
           


Continua...