quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Shangri-la


Xandhi terminou a ordenha e alisou o pêlo emaranhado da iaque, depois a liberou para pastar pela pradaria. Antes de levar o leite para dentro de casa, recolheu todo o estrume do estábulo e colocou dentro da estufa para queimar e aquecer a cabana onde moravam.
Com o leite fariam manteiga, queijo e xarope, além de beberem quente para aquecer o corpo no frio. Ela olhou o rebanho pastando ao longe feliz em saber que os animais os respeitavam e partilhavam a vida segura e tranquila de Shangri-la.
Ainda lembrava como se fosse ontem o dia que chegara ali com a avó e o irmão fugindo do horror de ver sua aldeia sendo saqueada por três Ietis das montanhas. O pai ordenara que ela salvasse a mãe, a avó e o irmão enquanto ele se juntaria aos homens da aldeia para a defender com a própria vida se fosse preciso. Mas a mãe se recusara a partir e deixar o marido sozinho sucumbindo junto com toda a aldeia. Para ela não havia escolha a não ser atender ao pedido do pai, os três partiram levando a dor e o medo como companheiros. Erraram por dias a fio na neve congelante sem rumo. Quando não parecia mais haver esperança de salvação, a aldeia sagrada apareceu no horizonte como um oásis no meio do deserto. O paraíso que tantos buscaram sem sucesso e de onde muitos fugiram por não estar preparado para alcançar a paz de espírito quase alucinante. O paraíso que surgira do desespero e da incerteza, do medo e da dor.
Ela agora sabia que Shangri-la era sagrada porque abria seus braços maternos para os que mais necessitavam e os que menos ambicionavam, fossem humanos ou não.
Inspirou enchendo os pulmões de ar gelado e expirou soltando fumaça pelo nariz, depois colocou a manta feita de pêlo de iaque em cima dos ombros, pegou os baldes de leite e foi até a cozinha. O ar quente da habitação a envolveu lembrando o colo aquecido da mãe quando era pequena. Enquanto aquecia um pouco de leite ouvia a voz grave da avó contando histórias para Jamhàal sentada na sala forrada com a lã da última tosa dos iaques da aldeia.
Quando o leite ferveu, levou três xícaras e se juntou aos dois agradecendo mentalmente pela oportunidade de ter sido escolhida para viver em Shangri-la.  

domingo, 8 de janeiro de 2012

Sozinha


Hellen sentou na cadeira próxima a janela e começou a folhear um livro que sequer conferira o titulo, sabia que não o leria, talvez nunca mais o fizesse. Ler agora não fazia mais sentido sem sua irmã por perto. Com quem discutiria sobre o quão bom era, ou sobre as falhas deixadas pelo autor? Rosana a deixara sem se importar em como ela ficaria sem sua companhia. A deixara entregue aos leões, com uma dúzia de sentimentos negativos inundando seu ser e não a perdoaria nunca por isso. Agora só sentia ódio e uma vontade louca de ver a dor estampada no rosto dos outros, era injusto que só ela sofresse enquanto o mundo ria indiferente ao seu sofrimento.
E o que mais doía, eram as lembranças. Uma música cantada em dueto arrancando risos por causa do inglês imperfeito ou da voz desafinada, uma cena duramente criticada e analisada, os passeios por ruas desconhecidas com a desculpa de um compromisso urgente só para fugir de casa por alguns minutos, os sonhos impossíveis sussurrados durante a madrugada...
Acima de tudo a certeza de nunca estar sozinha apesar de tudo. Viveriam para sempre juntas, mas Rosana se fora e agora teria de seguir em frente. Sempre em frente...