As pessoas costumam dizer que a noite seus medos parecem maiores,
suas dores parecem enormes e os fantasmas mais assustadores. Talvez elas tenham
razão, para uns a noite esconde segredos inconfessáveis. Não durmo sozinha
desde que era criança, ou melhor, não durmo nunca, mas isso também não é bom, acompanhada não
posso derramar minhas lágrimas como devo, se ouvirem meu pranto, exigirão
explicações que não quero dar, então as derramo silenciosamente enquanto todos
dormem, apenas meu travesseiro é testemunha, mas silenciar a expressão da dor
não a diminui e eu sigo assim, sofrendo sozinha. Minha mãe não é boba, já deve
ter visto meu travesseiro úmido pela manhã, mas ela cala, finge que nada
aconteceu, me deixa só, não me interroga. Por um lado isso é bom, não
gosto de dar explicações, mas por outro, dói ainda mais esse silêncio, é quase
um abandono. Enquanto sofro noite após noite, tenho medo de dormir, não fico
sozinha em nenhum comodo da casa, todos em volta me olham como se eu fosse
louca, não acreditam em mim, perdem a paciência comigo e me tratam como um
peso. Fui diagnosticada como esquizofrênica, vejo mortos, ouço vozes, tenho
fobias, tudo conspira a favor do diagnostico, no mundo real não sobra espaço
para o sobrenatural, preferem disferir uma sentença. Não me lembro ao certo
quando isso começou, acho que acontece desde sempre, pois dizem que nunca,
desde que nasci, tive uma noite de sono tranquila. Não me lembro de nada daquela época,
mas do restante de minha vida, não me lembro de outra coisa, até me acostumei
com eles, com os vultos, com as vozes, eram minhas únicas amigas, mas de um
tempo para cá, eles também me tratam mal, me dizem coisas dolorosas, me fazem
sofrer, me perturbam, não me deixam ter paz. Não todos eles, um em particular, o
homem de asas negras, esse me consome com seu veneno. Os outros até tentaram
interferir nas atitudes dele, mas foram rechaçados, agora apenas me olham com
pesar e balançam a cabeça, me estendem a mão de longe, mas não ousam se
aproximar. O homem me vigia dia e noite, mas à noite, ele parece ganhar mais
força, à noite tudo parece pior, deito virada para minha companheira de cama,
mas sinto sua presença e ouço sua voz, sei que ele está encostado no canto do
quarto, próximo a minha cabeça de braços cruzados, uma perna ereta e a outra
flexionada, as asas encolhidas, só são usadas quando quer me intimidar, quando
ouso enfrentá-lo, se não tivesse mostrado há muito tempo que não sou de todo
fraca, ele já teria me arrastado com ele para não sei onde, mas ele sabe o
quanto temo que isso aconteça, ele conhece tudo que se passa em meu ser, não
tenho como fugir, nem com quem contar. Enquanto todos dormem, eu sofro sozinha
e silenciosamente.
quinta-feira, 22 de agosto de 2013
sexta-feira, 2 de agosto de 2013
Zoltan, um cão adorável
ZOLTAN, O CÃO VAMPIRO DE DRÁCULA
Há
muitos anos atrás era de costume recebermos a volta dos pais para casa com histórias
e novidades, certa vez, nos chegou em um início de noite com muito folguedo
infantil um novo habitante. A mãe com a bolsa de bebê azul da caçula nos braços
entrou em casa fazendo segredo.
-
Quem adivinhar o que trago aqui, vai ganhar um pirulito! Só não pode opinar
caçula por já saber o que é. Fique de bico calado!
Todos
os outros pequenos se manifestaram ávidos por diversão, olhavam os contornos,
olhava-se as brechas e os lances arrancavam gargalhadas gerais, um dizia que
era um urso porque tinha visto uma patinha, a outra dizia que era uma bruxa
porque tinha medo de bruxas, outro dizia que era um bebê, outro passando perto
disse que era um gato para ficar no lugar de Tom que morreu queimado. A
surpresa cansada de esperar furou o bloqueio e colocou o focinho para fora, ágil
como um gato a mãe colocou de volta, passaria despercebido por todos se a mais
esperta não visse e delatasse: É um cachorro! E é amarelo cor de queimado! Ouviu-se
vivas e aplausos, a menina mesmo com ajuda havia acertado. O cãozinho passou de
mão em mão, era lindo e arredondado, parecia uma bolinha e estava agoniado,
queria descer, sentir o chão nos pés, andara duas horas no escuro para não ser
despejado, animal não pode andar em ônibus, desce ele e o dono, não importa se
ta tudo pago. Outra onda de gargalhadas, o pobrezinho cambaleava, estava tonto
e confuso, não conseguiu andar em linha reta. Foi bem vindo na família, tinha
braço à disposição, precisava de um nome, houve outra votação, para uma devia
se chamar urso, porque não era um brinquedo, mas era tão fofo quanto, para a
outra devia se chamar bruxa, mas era menino e não menina, o nome não servia. O
pai decidiu que se chamaria Zoltan, porque era ruivo como o cão vampiro de
Drácula, apesar de o filhotinho ser belo e gracioso diferente do personagem do
filme de terror de Albert Band, o nome agradou.
Como
se o batismo fosse o elo que ligaria o cão ao dono, os dois, pai e filho
postiço ficaram próximos, cada vez mais amigos. O cãozinho cresceu, ficou
grande como um labrador, o pelo brilhante reluzia ao sol, era quase todo ruivo,
exceto por um sinal branco na parte posterior do pescoço, ficava feliz quando
corria, mas encontrar o pai depois de dias viajando, o deixava radiante. Não
era o único cão da família e dos parentes, mas como ele não havia igual. O pai
tinha por habito caçar e pescar, colocava a roupa de caça e pesca, o chapéu, o
alforje e a espingarda ou a vara de pescar e saia logo cedo, era mais por
diversão ou terapia, pois nunca matara um bicho, voltava com as mãos mais
vazias do que quando partia, afinal a marmita voltava limpa. Talvez fosse só
para ter o gosto de entrar na mata, ter contato com a natureza, matar um pouco
a saudade da infância e se sentir em casa. Com a chegada de Zoltan, esses
momentos deixaram de ser solitários, um fazia companhia ao outro e ambos
adoravam. No fim da tarde Zoltan surgia no quintal esbaforido da corrida, ao
chegar nas redondezas, ele deixava o pai para trás e como se brincasse de
aposta, chegava primeiro em casa anunciando sua chegada dez, quinze minutos
antes. A mãe respirava aliviada, Zoltan chegou, o pai chegaria logo também, são
e salvo de ataque de onça, de porco do mato, de boi bravo e qualquer outro
perigo que espreitasse. Depois que chegavam, o pai sentava sereno, acendia um
cigarro e Zoltan deitava aos seus pés recebendo um afago entre uma baforada e
outra, depois de servido o vício, aos poucos os familiares se reuniam e sob a
brisa fresca da noite, ouviam histórias contadas pelo pai sobre o passado e
sobre o dia, as peripécias de Zoltan, um bicho novo que encontraram, o cão
curioso sempre aprontava uma, não podia ver um rio ou córrego que pulava dentro
para tomar banho, então pescar com ele do lado era um verdadeiro fracasso, mas
era divertido e não era solitário. Na mata corria atrás de pássaros e bichos de
menor porte, se via manada de boi bravo, corria atrás dos calcanhares latindo e
rosnando, era destemido, mas o pai sabendo do risco que corriam, também se
arriscava para salvá-lo de ser pisoteado. O pai tinha paixão por canto de
pássaros e isso ele sabia, respeitava o momento, ficava em silêncio apreciando
o fenômeno com paixão igual. Enquanto o pai contava as traquinices do dia,
Zoltan olhava desconfiado, entendia que era o assunto e que algo tinha feito de
travesso, apenas abanava o rabo e olhava de soslaio atento a qualquer sinal de
irritação, mas nunca era castigado, tinha muitas regalias.
Viveu
assim por mais de dois anos, nunca ficara doente, nunca fora atropelado ou
sofrera qualquer outro acidente, era belo e inteligente. Um dia apareceram na
cidade homens vestido em fardas cor de terra, eram de um órgão competente,
cuidavam da saúde de bichos e de gente. Furavam, tiravam sangue, faziam exames
e quando ninguém mais se lembrava, lá vinham eles, com resultados e sentenças.
Não tinham nomes próprios, eram apenas Sucam’s (Superintendência de Campanhas de Saúde Pública) e nunca foram tão cruéis, quanto quando trouxeram o carrasco e a sentença de Zoltan, que junto com tantos outros foi examinado e teve o sangue colhido, eles não eram médicos, mas tinham um poder de decidir qual o destino dos doentes. Sumiram e o coração aliviado, tomou conta de toda gente. Dias depois, sem que nem pra que, chegaram na porta com um carro e uns documentos, a mãe tinha de assinar, era ordem do governo, os animais contaminados por leishmaniose, teriam de ser sacrificados. Como impedir tal absurdo, ninguém sabia, ninguém podia, talvez o pai pudesse, mas ele não estava em casa. A mãe alegou que era visível a saúde do animal, o pelo lustroso e sedoso, diferente da cadela do irmão que estava doente, caindo os pedaços de couro nas costas e nas orelhas, mas eles foram contundentes, a cadela era saudável, o cão é que estava doente. Mesmo com os apelos e os argumentos, acorrentaram-no e colocaram em cima da caçamba, nem precisava das correntes, era bom e inocente, não faria mal a ninguém nem que quisesse. O homem sempre a dizer: Minha senhora é para seu bem, antes ele que suas crianças, além do mais nem vai sentir, vai fechar os olhos e dormir simples assim.
O carro partiu, Zoltan alegre olhando todos, o rabo balançando, estava passeando sem o pai pela primeira vez. A mãe chorou inconsolável: O que o pai vai dizer, quando não encontrar o seu bichinho que partiu tão feliz, nem desconfiava de seu destino. O filho inconformado pensava em uma solução, o amigo comovido fez um convite: Vamos atrás deles e tomamos o cão a força, eles não podem matar um bicho que nem lhes pertence, não passam de uns cruéis sem coração.
A ideia era boa, a esperança renasceu, foram o filho e mais dois, com certeza trariam o cão. Pouco tempo depois voltaram, os homens eram irredutíveis, não havia acordo, deviam esquecer o amigo, seria melhor assim.
Como esquecer? Como fingir que estava tudo bem? Como contar ao pai? Como seguir em frente?
Quando
o pai chegou de viagem, soube de tudo, nos mínimos detalhes, Zoltan se fora
para sempre por um ato de crueldade, a mãe tinha certeza que os resultados
estavam trocados, mas eles tinham o poder, não aceitaram argumento. O pai
acendeu um cigarro, sentou no escuro do quintal e de cabeça baixa por lá ficou
por muito tempo, ninguém ousou interromper, era seu luto, estava sofrendo.
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