sexta-feira, 27 de março de 2015

Ela não alçou voou

Aproveitou que os pais estavam na cozinha e foi até a varanda olhar o horizonte. Estava triste como sempre, a tristeza era sua companheira habitual. Não entendia como as pessoas podiam superar suas dores aparentemente tão facilmente. Sabia de histórias incríveis de superação de pessoas que tinham enfrentado verdadeiras tempestades em suas vidas e tinham seguido adiante apesar de tudo. Porque então não acontecia a mesma coisa com ela? Porque não superava suas dores? Porque sentia que a vida não foi feita para ela? Sentia dores e angustias que ninguém compreendia, todos achavam que ela não tinha motivos para se sentir triste e incompreendida. Trazia segredos que jamais seriam revelados, nunca falaria deles para ninguém, nunca escreveria sobre eles em cartas e diários, não admitiria para si mesma que era uma vítima da maldade humana, de uma mente doente e perversa. Nunca entenderia porque tinha acontecido tantas coisas com ela que a maioria das pessoas nem sonhavam em viver. Estava tão cansada de viver! Estava tão cansada de seguir vivendo mesmo quando seu corpo pedia uma trégua. Não sonhava em se tornar adulta e nem tão pouco em chegar a adolescência. Se estava tão difícil hoje que era criança, imagine quando crescesse.

Ali naquela varanda gelada olhando para baixo sentiu uma vontade inédita de saltar e voar como pássaro, a vontade só não era maior que o medo, sentia tanto medo que seu corpo tremia. Olhou para a porta por onde viera e não ouviu som algum, estava sozinha, havia apenas a solidão, sua velha e boa companheira. Se quisesse mesmo saltar para a liberdade, a hora era agora. Uma corrente de ar percorreu sua espinha, estava com mais medo que nunca, mas era preciso aproveitar a oportunidade. Subiu nas grades e colocou as pernas para fora, o vento bateu em cheio em suas pernas nuas e uma das sapatilhas acabou caindo. Ela não alçou voou, mas era apenas um objeto sem vida, era de se esperar. Ouviu sons vindo pela sala e decidiu que devia tentar com medo mesmo, imaginou seu corpo leve flutuando pelo ar e sorriu feliz. Abriu os braços e pendeu o corpo no vazio, a queda foi rápida, quase não teve tempo de pensar, mas ainda conseguiu formular uma frase de lamento antes de se chocar com o cimento e ter seus ossos e órgãos espatifados. Seu último pensamento foi: Não precisava ser tão rápido! Que pena! Mas era apenas um objeto sem vida... era de se esperar.

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