A
neve que caia há dois dias sem parar tinha tomado todo o povoado, mas não
impedia que as pessoas continuassem vivendo suas vidas como se ainda fosse
verão. Na verdade a neve já fazia parte da vida de todos e o verão parecia
apenas uma lenda daquelas que os pais costumam contar para divertir os filhos e
aguçar a imaginação de todos. Em alguns meses pararia de nevar todo dia e as
árvores voltariam a florescer, mas continuaria tão frio quanto estava agora,
então esse tal de verão com temperaturas agradáveis e um sol morno que aquece o
coração como um aquecedor natural eles nunca viram ou sentiram.
Lúcia
olhou pela janela coberta com mais ou menos 20 centímetros de neve e pulou de
alegria ao ver que havia parado de nevar, saiu correndo pela casa em busca da ama
para pedir permissão para sair, mas não encontrou ninguém nas áreas comuns, ela
deveria estar no quarto. Decidiu sair sem permissão mesmo, estava cansada de
ficar trancada em casa dia e noite.
Vestiu um sobretudo de lã e abriu
a porta, saiu deixando um rastro de pegadas profundas para trás, contornou a
frente da casa e partiu pela estrada deserta em direção a árvore que ficava na
beira do riacho congelado, ela estava coberta de neve e certamente estaria
escorregadia, não ia dar para subir em seus galhos. O vento frio e cortante fustigava
sua pele avermelhada enquanto ela olhava em volta para a imensidão branca, era
uma visão encantadora, amava viver ali. A natureza poderia parecer diferente
nos livros de biologia e até atraente as vezes, mas nada se comparava a vida
por aquelas bandas, árvores, animais, plantas e pessoas que sobreviviam em meio
a tanto gelo e desolação sem sentir falta de uma vida mais acessível.
Amava
tanto aquele inverno eterno que sonhava em um dia de nevasca poder sair de casa
e sentir a neve caindo em sua cabeça, ombros e braços, mas seus pais e sua ama
a matariam se ela fizesse uma loucura dessas. Tinha que se contentar em
caminhar apenas na neve fofa e espessa.
Estava
distraída olhando o horizonte quando um movimento no topo da arvore chamou sua
atenção, havia mais alguém ou algo ali, mas estava camuflado pelos tufos de
neve acumulados nos galhos. Decidiu se aproximar ainda mais da beirada do rio onde
os galhos se curvavam a altura de sua mão em busca de uma boa visão da criatura
que lhe fazia companhia. Quando se aproximou, um imenso floco de neve alçou
voou derrubando neve em sua cabeça impedindo-a de ver com clareza que animal
era ou que direção havia tomado. Limpou o rosto e sacudiu o gelo do corpo, saiu
de debaixo dos galhos e olhou em volta em busca de um movimento que denunciasse
sua localização. Movimentos nos arbustos ao longe chamaram mais uma vez sua
atenção e ela correu para lá sem pensar duas vezes, pretendia chegar o mais
próximo possível da ave, queria descobrir qual a espécie e admirar sua beleza.
Não tomou o cuidado de olhar a direção que estava seguindo para que não viesse
a se perder, simplesmente correu. Ao se aproximar do arbusto branco como flocos
de algodão, as folhas remexeram com força derrubando a neve no chão, uma ave
não seria capaz de tanta força, seu coração disparou antes mesmo que pudesse
ver quem ou o que estava escondido ali, sabia que não era uma boa surpresa.
Virou na direção que viera e saiu correndo antes mesmo que o ser saísse de trás
das folhagens e a encarasse. Correu o mais rápido que pode atolando as botas na
neve e se sentindo cada vez mais pesada e encharcada, sabia que não iria longe
e seria atacada a qualquer instante, ouvia a respiração pesada atrás de si e
sentia que estava cada vez mais perto de abocanhá-la ou agarra-la, pela
velocidade que vinha em sua direção e pelo som feroz soube que não era uma
criatura humana, e soube também que não era um animal de pequeno porte, seu fim
havia chegado muito cedo. Tentou aumentar a velocidade mesmo estando exausta
já, mas seu pé entortou e ela caiu de cara na neve fofa enchendo seu rosto,
olhos e boca de gelo. Fechou os olhos e esperou o bote, seus pais sempre
disseram que não podia sair sozinha por ai, os animais selvagens estariam a
espreita de qualquer vacilo deles para caçá-los, as comidas nesses tempos eram
escassas e os ataques de tigres e lobos nas aldeias aconteciam com mais
frequência que o normal. O animal saltou em cima de si pousando suas patas
firmes e ágeis em suas costas, abocanhou seu capuz e estraçalhou a lã em busca
de carne fresca, estava faminto. O medo tomou seu corpo enchendo-a de pânico,
seu sangue congelou nas veias, sentiu vontade de gritar, mas a voz morreu na
garganta, seria melhor não resistir e aceitar que a culpa por aquilo fora toda
dela, iria morrer de forma tão estupida por pura teimosia. O animal investiu
mais uma vez em seu pescoço, mas recuou ganindo desesperado, assustada com o
som doloroso ela levantou a cabeça e encarou um enorme lobo lutando com uma
ave, ele gania toda vez que o animal bicava seu rosto e avançava na ave que
batia as asas com fúria. A luta não durou muito e o animal recuou com o rosto
sangrado, a ave batia as asas e exibia suas garras afiadas ameaçadoramente
fazendo o lobo fugir furioso por ter perdido sua caça e a briga. Depois que ele
sumiu de vista, a ave pousou no chão exausta e se virou em direção a garota que
permanecera deitada incapaz de reagir. Era uma belíssima coruja branca e
enorme, suas asas abertas mediam uns dois metros e ela em pé media uns oitenta
centímetros. Encarou Lúcia com olhos brilhantes e baixou a cabeça como se a
cumprimentasse. As lágrimas escorreram por seu rosto e o pranto fez seu corpo
trêmulo recuperar o controle de si. Se levantou desorientada e caiu de joelhos
em frente a ave magnifica, chorou por longos minutos sem dizer uma só palavra,
a coruja também não fez nenhum som, esperou pacientemente que a criança
retribuísse a gentileza com um obrigado ao menos. Quando Lúcia falou, ela se
eriçou atenta ao som.
-
Você salvou minha vida! Como eu posso retribuir isso? Como eu posso agradecer
seu gesto?
A
coruja olhou-a como se entendesse cada palavra e abriu as asas em toda a sua
extensão como se quisesse abraçá-la, permaneceu assim por alguns minutos até
que a criança se moveu em sua direção e enlaçou seu corpo surpreendentemente
macio e quente. Sentiu tanto afeto vindo daquele ser que que seu coração se
acalmou de repente e dentro daquelas asas que a envolviam se sentiu segura, até
o frio congelante se foi. A coruja recuou alguns passos e fechou as asas encarando-a,
depois bateu asas e partiu pela imensidão. Lucia levantou e correu atrás dela
até vê-la sumir no horizonte, quando contasse a todos o que tinha vivido,
ninguém acreditaria, diriam que ela estava louca. Mas de uma coisa ela sabia,
nunca mais esqueceria daquele dia enquanto vivesse.
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