domingo, 1 de março de 2015

Lúcia



A neve que caia há dois dias sem parar tinha tomado todo o povoado, mas não impedia que as pessoas continuassem vivendo suas vidas como se ainda fosse verão. Na verdade a neve já fazia parte da vida de todos e o verão parecia apenas uma lenda daquelas que os pais costumam contar para divertir os filhos e aguçar a imaginação de todos. Em alguns meses pararia de nevar todo dia e as árvores voltariam a florescer, mas continuaria tão frio quanto estava agora, então esse tal de verão com temperaturas agradáveis e um sol morno que aquece o coração como um aquecedor natural eles nunca viram ou sentiram.
Lúcia olhou pela janela coberta com mais ou menos 20 centímetros de neve e pulou de alegria ao ver que havia parado de nevar, saiu correndo pela casa em busca da ama para pedir permissão para sair, mas não encontrou ninguém nas áreas comuns, ela deveria estar no quarto. Decidiu sair sem permissão mesmo, estava cansada de ficar trancada em casa dia e noite.
Vestiu um sobretudo de lã e abriu a porta, saiu deixando um rastro de pegadas profundas para trás, contornou a frente da casa e partiu pela estrada deserta em direção a árvore que ficava na beira do riacho congelado, ela estava coberta de neve e certamente estaria escorregadia, não ia dar para subir em seus galhos. O vento frio e cortante fustigava sua pele avermelhada enquanto ela olhava em volta para a imensidão branca, era uma visão encantadora, amava viver ali. A natureza poderia parecer diferente nos livros de biologia e até atraente as vezes, mas nada se comparava a vida por aquelas bandas, árvores, animais, plantas e pessoas que sobreviviam em meio a tanto gelo e desolação sem sentir falta de uma vida mais acessível.
Amava tanto aquele inverno eterno que sonhava em um dia de nevasca poder sair de casa e sentir a neve caindo em sua cabeça, ombros e braços, mas seus pais e sua ama a matariam se ela fizesse uma loucura dessas. Tinha que se contentar em caminhar apenas na neve fofa e espessa.
Estava distraída olhando o horizonte quando um movimento no topo da arvore chamou sua atenção, havia mais alguém ou algo ali, mas estava camuflado pelos tufos de neve acumulados nos galhos. Decidiu se aproximar ainda mais da beirada do rio onde os galhos se curvavam a altura de sua mão em busca de uma boa visão da criatura que lhe fazia companhia. Quando se aproximou, um imenso floco de neve alçou voou derrubando neve em sua cabeça impedindo-a de ver com clareza que animal era ou que direção havia tomado. Limpou o rosto e sacudiu o gelo do corpo, saiu de debaixo dos galhos e olhou em volta em busca de um movimento que denunciasse sua localização. Movimentos nos arbustos ao longe chamaram mais uma vez sua atenção e ela correu para lá sem pensar duas vezes, pretendia chegar o mais próximo possível da ave, queria descobrir qual a espécie e admirar sua beleza. Não tomou o cuidado de olhar a direção que estava seguindo para que não viesse a se perder, simplesmente correu. Ao se aproximar do arbusto branco como flocos de algodão, as folhas remexeram com força derrubando a neve no chão, uma ave não seria capaz de tanta força, seu coração disparou antes mesmo que pudesse ver quem ou o que estava escondido ali, sabia que não era uma boa surpresa. Virou na direção que viera e saiu correndo antes mesmo que o ser saísse de trás das folhagens e a encarasse. Correu o mais rápido que pode atolando as botas na neve e se sentindo cada vez mais pesada e encharcada, sabia que não iria longe e seria atacada a qualquer instante, ouvia a respiração pesada atrás de si e sentia que estava cada vez mais perto de abocanhá-la ou agarra-la, pela velocidade que vinha em sua direção e pelo som feroz soube que não era uma criatura humana, e soube também que não era um animal de pequeno porte, seu fim havia chegado muito cedo. Tentou aumentar a velocidade mesmo estando exausta já, mas seu pé entortou e ela caiu de cara na neve fofa enchendo seu rosto, olhos e boca de gelo. Fechou os olhos e esperou o bote, seus pais sempre disseram que não podia sair sozinha por ai, os animais selvagens estariam a espreita de qualquer vacilo deles para caçá-los, as comidas nesses tempos eram escassas e os ataques de tigres e lobos nas aldeias aconteciam com mais frequência que o normal. O animal saltou em cima de si pousando suas patas firmes e ágeis em suas costas, abocanhou seu capuz e estraçalhou a lã em busca de carne fresca, estava faminto. O medo tomou seu corpo enchendo-a de pânico, seu sangue congelou nas veias, sentiu vontade de gritar, mas a voz morreu na garganta, seria melhor não resistir e aceitar que a culpa por aquilo fora toda dela, iria morrer de forma tão estupida por pura teimosia. O animal investiu mais uma vez em seu pescoço, mas recuou ganindo desesperado, assustada com o som doloroso ela levantou a cabeça e encarou um enorme lobo lutando com uma ave, ele gania toda vez que o animal bicava seu rosto e avançava na ave que batia as asas com fúria. A luta não durou muito e o animal recuou com o rosto sangrado, a ave batia as asas e exibia suas garras afiadas ameaçadoramente fazendo o lobo fugir furioso por ter perdido sua caça e a briga. Depois que ele sumiu de vista, a ave pousou no chão exausta e se virou em direção a garota que permanecera deitada incapaz de reagir. Era uma belíssima coruja branca e enorme, suas asas abertas mediam uns dois metros e ela em pé media uns oitenta centímetros. Encarou Lúcia com olhos brilhantes e baixou a cabeça como se a cumprimentasse. As lágrimas escorreram por seu rosto e o pranto fez seu corpo trêmulo recuperar o controle de si. Se levantou desorientada e caiu de joelhos em frente a ave magnifica, chorou por longos minutos sem dizer uma só palavra, a coruja também não fez nenhum som, esperou pacientemente que a criança retribuísse a gentileza com um obrigado ao menos. Quando Lúcia falou, ela se eriçou atenta ao som.
- Você salvou minha vida! Como eu posso retribuir isso? Como eu posso agradecer seu gesto?
A coruja olhou-a como se entendesse cada palavra e abriu as asas em toda a sua extensão como se quisesse abraçá-la, permaneceu assim por alguns minutos até que a criança se moveu em sua direção e enlaçou seu corpo surpreendentemente macio e quente. Sentiu tanto afeto vindo daquele ser que que seu coração se acalmou de repente e dentro daquelas asas que a envolviam se sentiu segura, até o frio congelante se foi. A coruja recuou alguns passos e fechou as asas encarando-a, depois bateu asas e partiu pela imensidão. Lucia levantou e correu atrás dela até vê-la sumir no horizonte, quando contasse a todos o que tinha vivido, ninguém acreditaria, diriam que ela estava louca. Mas de uma coisa ela sabia, nunca mais esqueceria daquele dia enquanto vivesse.

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