De um salto parou em cima do antigo
prédio da alfândega em ruínas e ficou observando a noite silenciosa. A lua
cheia sobre a Barra deitava um filete de luz prata sobre o rio gerando uma
belíssima paisagem, as águas moviam-se calmamente beijando o alicerce da mureta
de proteção de vez em quando. Infelizmente só era possível respirar ar puro e
admirar a paisagem na escuridão da noite, sua aparência disforme provocaria
pânico nos seres viventes. Quando seus chifres e suas asas foram esculpidos em
seu corpo no alto da torre da igreja acreditava-se que traria sorte a quem
frequentasse a residência divina. Agora se pensava outra coisa, para todos era
apenas um demônio e trazia má sorte. Durante o dia diversas pessoas olhavam
para o alto para admirar as esculturas históricas e benziam-se ao deparar-se
com sua figura esquálida desonrando as imagens santas ao seu lado. Imagine o
que aconteceria se soubessem que ele ganhava vida a noite e se aventurava pelas
ruínas do terminal pesqueiro, dos casarões e de tantos outros estabelecimentos
esquecidos em meio as lojas e prédios modernos do atual centro da cidade.
Conhecia aquele lugar como a palma da
mão, vivia ali desde que o lugar não passava de uma vilinha esquecida por todos
até o inicio do século dezenove quando começaram a surgir casa e prédios em uma
velocidade vertiginosa; até quando não havia mais espaço para crescer e a cidade
se expandiu para outras áreas. A ele restou habitar as construções inacabadas
furtivamente esperando o dia em que andaria tranquilamente outra vez, mas até
agora esse dia não chegou. Sentou-se no parapeito e ficou observando alguns
mendigos dormirem no passeio lá embaixo, outros cheirarem substancias
desconhecidas em garrafas ou latas falando palavras desconexas, enquanto
pensava em como seria sua vida se existissem outros de sua espécie para poder
dividir seus dias. Os seres de baixo eram tantos que mais pareciam uma praga,
enquanto que ele estava só e cansado. Poderia descer um pouco e se divertir apavorando
os companheiros de noite, mas não sentia vontade, preferiu ficar até que a fome
o fizesse buscar alimento nas ruínas do terminal pesqueiro.
Havia noites em que voava pelo céu
iluminado com luzes artificiais buscando esperançoso um ser se não igual, que
ao menos voasse como ele e que lhe contasse o que vira e vivera onde passara,
mas nunca encontrou ninguém, apenas corujas urbanas desprovidas da fala. Estava
cansado de buscar, sentia apenas vontade de descansar, mas seu corpo tinha
necessidade de se exercitar, o que o obrigava a voar ou saltar de vez em quando
para suportar as dores físicas.
Levantou, ergueu as asas atrofiadas até
o alto, ensaiou uns movimentos que o ergueram alguns centímetros do telhado,
mas depois voltou a aterrissar e encolheu-as, preferiu saltar até o outro lado.
Caiu com estrondo no telhado do terminal para assustar os humanos adormecidos lá em baixo, ouviu um reboliço no interior do prédio e depois o silêncio
outra vez, estavam todos cansados demais para se importar com os ruídos do que
julgavam serem gatos de rua.
Desceu até lá e escolheu
sua vitima com cuidado, era muito exigente em questão de comida, rapidamente
agarrou a vitima e cravou as presas no pescoço fazendo o sangue jorrar para
dentro de sua garganta até ficar satisfeito. Depois jogou o corpo inerte no
chão e voou de volta para a torre da igreja, agachou-se, encolheu a asas e
olhou para o horizonte aguardando o nascer do sol.