domingo, 29 de julho de 2012

Gárgula




De um salto parou em cima do antigo prédio da alfândega em ruínas e ficou observando a noite silenciosa. A lua cheia sobre a Barra deitava um filete de luz prata sobre o rio gerando uma belíssima paisagem, as águas moviam-se calmamente beijando o alicerce da mureta de proteção de vez em quando. Infelizmente só era possível respirar ar puro e admirar a paisagem na escuridão da noite, sua aparência disforme provocaria pânico nos seres viventes. Quando seus chifres e suas asas foram esculpidos em seu corpo no alto da torre da igreja acreditava-se que traria sorte a quem frequentasse a residência divina. Agora se pensava outra coisa, para todos era apenas um demônio e trazia má sorte. Durante o dia diversas pessoas olhavam para o alto para admirar as esculturas históricas e benziam-se ao deparar-se com sua figura esquálida desonrando as imagens santas ao seu lado. Imagine o que aconteceria se soubessem que ele ganhava vida a noite e se aventurava pelas ruínas do terminal pesqueiro, dos casarões e de tantos outros estabelecimentos esquecidos em meio as lojas e prédios modernos do atual centro da cidade.
Conhecia aquele lugar como a palma da mão, vivia ali desde que o lugar não passava de uma vilinha esquecida por todos até o inicio do século dezenove quando começaram a surgir casa e prédios em uma velocidade vertiginosa; até quando não havia mais espaço para crescer e a cidade se expandiu para outras áreas. A ele restou habitar as construções inacabadas furtivamente esperando o dia em que andaria tranquilamente outra vez, mas até agora esse dia não chegou. Sentou-se no parapeito e ficou observando alguns mendigos dormirem no passeio lá embaixo, outros cheirarem substancias desconhecidas em garrafas ou latas falando palavras desconexas, enquanto pensava em como seria sua vida se existissem outros de sua espécie para poder dividir seus dias. Os seres de baixo eram tantos que mais pareciam uma praga, enquanto que ele estava só e cansado. Poderia descer um pouco e se divertir apavorando os companheiros de noite, mas não sentia vontade, preferiu ficar até que a fome o fizesse buscar alimento nas ruínas do terminal pesqueiro.
Havia noites em que voava pelo céu iluminado com luzes artificiais buscando esperançoso um ser se não igual, que ao menos voasse como ele e que lhe contasse o que vira e vivera onde passara, mas nunca encontrou ninguém, apenas corujas urbanas desprovidas da fala. Estava cansado de buscar, sentia apenas vontade de descansar, mas seu corpo tinha necessidade de se exercitar, o que o obrigava a voar ou saltar de vez em quando para suportar as dores físicas.
Levantou, ergueu as asas atrofiadas até o alto, ensaiou uns movimentos que o ergueram alguns centímetros do telhado, mas depois voltou a aterrissar e encolheu-as, preferiu saltar até o outro lado. Caiu com estrondo no telhado do terminal para assustar os humanos adormecidos lá em baixo, ouviu um reboliço no interior do prédio e depois o silêncio outra vez, estavam todos cansados demais para se importar com os ruídos do que julgavam serem gatos de rua. 
Desceu até lá e escolheu sua vitima com cuidado, era muito exigente em questão de comida, rapidamente agarrou a vitima e cravou as presas no pescoço fazendo o sangue jorrar para dentro de sua garganta até ficar satisfeito. Depois jogou o corpo inerte no chão e voou de volta para a torre da igreja, agachou-se, encolheu a asas e olhou para o horizonte aguardando o nascer do sol.

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